TEXTO DE APRESENTAÇÃO.
Boa tarde a todos.
É sempre um prazer estar na casa dos
livros, acrescido aqui do prazer de estar no meio de pessoas que
gostam de livros.
Há convites que não posso recusar,
mesmo que a tarefa pareça exceder a competência, por uma questão
de coerência, mas também, por uma questão de prazer e paixão,
prazer de estar nas lutas pelo mundo rural, é aí onde se encontram
as pessoas mais fragilizadas, mas também mais lutadoras, e paixão
pelo campo, pela agricultura, pela defesa do ambiente, pela defesa da
nossa paisagem, pela defesa das nossas aldeias, pela defesa da nossa
produção familiar, pela defesa da nossa soberania alimentar, pela
defesa da Guarda, da região e do país.
Neste ano, designado Ano Internacional
da Agricultura Familiar, vem a talho de foice apresentar um livro
sobre a produção no mundo rural.
Nunca tive jeito, nem vontade, para
homilias laudatórias, também não era esse o propósito do convite.
Vou trazer-vos uma visão
necessariamente heterodoxa de um camponês a ler entrelinhas, e muito
há nas entrelinhas desta obra.
E, porque estamos a falar de
agricultura, antes de iniciar a apresentação propriamente dita
permitam-me pedir-vos um grito de protesto e indignação,
um minuto de silêncio por Marinalva
Manoel-27 anos-líder dos Kaiowá, lutadora incansável pelo direito
às terras dos seus antepassados, contra a devastação criminosa da
floresta amazónica, bárbara e sadicamente, assassinada na
madrugada de 1 de Novembro, pelos esbirros ao serviço do
agro-negócio.
Muito obrigado.
Os livros, a cultura, as artes,
sobretudo num tempo em que uns quantos psicopatas agressivos e com
ânsias de prestígio social, e poder, numa situação de desespero,
se penduram nos ponteiros do relógio do tempo, tentando pará-lo, ou
mesmo atrasá-lo, os livros, a cultura, as artes, dizia, só se
realizam completamente como contra-poder. Por isso um agradecimento
especial a Márcio Fonseca por ir à procura dos produtos da Guarda,
e tantos e de excelente qualidade eles são, e colocá-los à frente
do nariz do poder, quando esse poder está apostado em ignorá-los e
exterminá-los.
Márcio Fonseca, o autor da obra que
hoje vos venho apresentar, nasceu no Rochoso há 35 anos, é editor
do belogue “Crónicas do Noéme”. Tem diversas colaborações na
imprensa e, sempre atento à sua terra publicou os livros “Orações
Populares do Rochoso” e “Irmandade das Almas do Rochoso-Notas de
Um Arquivo desconhecido”.É formado em Engenharia Informática pelo
Instituto Superior Técnico. Frequentou diversos cursos na área do
jornalismo no Cenjor – Centro Protocolar de Formação Profissional
Para Jornalistas. Diz-se beloguer de causas perdidas, não, não há
causas perdidas enquanto se luta por elas.
Márcio Fonseca diz-se “lavrador de
nascença”, nasceu e cresceu no campo, observador atento dos
trabalhos agrícolas, sente um forte apelo das origens e aí regressa
sempre que pode.
É um activista empenhado, pelo
ambiente, natureza, biodiversidade, pela vida.
Guarda, Produtos de Cá, seria bem
melhor apresentado lendo o prefácio do autor. Aí encontramos um
conhecimento, bem fundamentado, do caminho que tem percorrido a
agricultura, os problemas actuais e as melhores soluções propostas
pelos movimentos de agricultores.
Os livros não podem ser doses
empacotadas de refeições pré-mastigadas. A alimentação do
espírito deve vir agreste, como a paisagem serrana, provocante como
uma mulher guerreira sob um manto diáfano, sedutora e enigmática
como um tesouro escondido e pintado em cores vivas como um quadro que
nunca conseguimos admirar totalmente.
Guarda, Os Produtos de Cá tem algo de
tudo isto.
À primeira leitura colhemos a
informação dos produtos da região e deixa-nos a vontade
irresistível de voltar a lê-lo.
Quando a ele voltamos apreciamos a
oportunidade e liberdade deixadas pelas perguntas do entrevistador,
mas bem encadeadas e imaginadas por alguém que conhece bem o campo,
a produção agrícola, os seus problemas.
Perguntas inteligentes deixaram aos
entrevistados todo o espaço de manobra para expressarem as suas
ideias.
Ali estão experiências de vida,
desejos, queixas, base para uma reflexão bem mais profunda sobre o
caminho que levamos, para onde queremos ir, qual o futuro da nossa
agricultura, da região e, principalmente, o futuro das gerações
vindouras.
Guarda, Produtos de Cá, aborda uma
amostra alargada, e bem significativa, do que cá se produz.
Vai do queijo ao mel, passando pelas
aromáticas, vinhos, azeites, ou mesmo os modernos e tão na moda
mirtilos, sem esquecer as castanhas, morangos, amêndoas, o burel, ou
a emblemática morcela.
Cada entrevista é precedida de uma
citação, sempre oportuna e bem a propósito, até Gil Vicente. Hoje
a Barca do Inferno teria de ser bem maior.
Uma ideia é comum a quase todos os
entrevistados:
O abandono a que os sucessivos governos
têm votado a agricultura, a agricultura familiar, o campo, o
interior. É também bem evidente que as críticas tendem a diminuir
com o aumento da dimensão da exploração agrícola.
Sempre se disse que a agricultura era a
forma de empobrecer alegremente. Tem sido a forma de empobrecer, hoje
já não alegremente, miseravelmente, retirando-lhe as condições
mínimas para poderem produzir e vender, os que trabalham, às vezes
não de Sol a Sol mas de noite a noite, sem domingos, sem feriados,
sem férias, a agricultura é um trabalho a tempo inteiro na
verdadeira acessão da expressão, para enriquecer agiotas e
exploradores sem escrúpulos.
Esta é uma situação propositada,
calculada e aplicada ao milímetro.
Não se pode continuar a deixar
apodrecer os nossos produtos, de excelente qualidade, e importar os
dos outros, cultivados em grandes empresas de agro-negócio,
intensivamente, cheios de fito-fármacos, colhidos antes da
maturação, deteriorados pelo transporte e carregados de nutrientes
químicos. Não podemos continuar a permitir que se destrua a nossa
produção para favorecer países terceiros.
Já passaram pelo poder vários
governantes com carta de coveiros, todos eles têm sido “enterrados”,
salvo seja, antes do pretenso morto para o qual abriam afincadamente
a cova.
Transparece claramente dos diálogos, a
agricultura é uma paixão, é um apelo da natureza, é uma forma de
estar, e isso não se derrota.
A agricultura familiar sobrevive há
séculos, continuará contra ventos, intempéries, legislação
criminosa, incompetência governativa e interesses agiotas.
Guarda, Produtos de Cá é um grito da
terra.
Ali está bem expresso um passado de
miséria, fome, exploração, escravatura, tirania, caciquismo,
feudalismo recente; o retrato dum presente de luta; caminhos para um
futuro mais solidário e fraterno onde se possa produzir e vender.
Este livro vem provar, através da voz
de alguns entrevistados:
O poder não está, nem esteve, com os
agricultores, nem com a agricultura. O poder está e esteve sempre
com a classe dominante, com os interesses dos amigos, padrinhos e
afilhados. Veja-se, num país dependente, em mais de sessenta por
cento, da importação de produtos alimentares, o governo incentiva e
promove, não a plantação de batatas, ou couves, ou cereais,
incentiva e promove a plantação de eucaliptos. Isto é um
contra-senso, para lhe não chamar um crime, atenta contra a
soberania alimentar do país, e sem soberania alimentar não há
soberania política, e contra a natureza, o ambiente, a qualidade de vida e promove, ainda mais, a desertificação. Atenta mesmo contra a racionalidade. O eucalipto é um grande consumidor de água, mas não só o eucalipto, as exóticas que por aí se incentivam consomem quatro e cinco vezes mais, para ser comedido, do que as
espécies autóctones, bem adaptadas ao
clima e solo, para além de ser discutível o seu interesse e
necessidade. A água que chega a Portugal através da rede
hidrográfica, depende, em mais de setenta por cento, da boa vontade
de Espanha e de um tratado de garantia de caudais. Quando a carência
começar, e ela está aí à porta, Espanha reduzirá necessariamente
os caudais. Como se sustentará esta agricultura destruidora,
agressiva e pouco inteligente? Que futuro terá? Vamos regar os
eucaliptos e as exóticas ou as frutas e legumes. Vai haver água
para beber?
Quem trabalha e vive no campo é quem
conhece os problemas, as necessidades e as soluções.
Nunca serão os agricultores
absentistas, os agricultores de poltrona e ar condicionado, os
agricultores de gravata, a resolver os problemas da agricultura
familiar, dos pequenos e médios agricultores.
As soluções têm de ser encontradas
por quem tem os conhecimentos práticos ou, pelo menos, com quem tem
os conhecimentos práticos.
Não desdenhamos do apoio técnico, nem
da investigação científica, temos óptimos técnicos, raramente
são os que ascendem ao poder mas, como diz o uruguaio Eduardo
Galeano, ou Noam Chomsky norte-americano, para ir ao ventre da besta,
seria demasiada ingenuidade, da nossa parte, acreditar que o sistema
capitalista nos daria informações, ou formação, que o pudessem
prejudicar, ou pôr em causa.
Devemos portanto desconfiar da
informação impingida pelo sistema, mesmo a dita técnica, ou se
calhar ainda mais desta, como desconfiamos do charlatão que nos vem
vender o pó para os calos ou a banha-da-cobra.
Não podemos esquecer que , a situação
em que se encontra a agricultura, foi sempre apoiada , ratificada e
provocada por aquela formação e informação.
Se é verdade necessitar a agricultura,
para progredir, apoio técnico e investigação, não é menos verde
que, nenhum povo pode dispensar, ou sequer ignorar, milénios de
conhecimentos acumulados pelos agricultores, o tal saber de
experiência feito, testados e aperfeiçoados no dia a dia.
Deixem-me aqui intrometer uma pequena
história sobre cogumelos, agora época deles por excelência:
Ali pela meada da década de oitenta
havia uns programas do IEFP de aproximação dos jovens à vida
profissional. Várias entidades públicas participavam entre elas as
chamadas Administrações Florestais.
No fim do programa, aí por Outubro,
fazia-se um convívio sempre numa Casa da Floresta.
Guarda Florestal, e outros curiosos,
levávamos os jovens a colher cogumelos. Dos recolhidos, quase sempre
numa panela de ferro e ao lume, fazia-se um petisco.
A Administradora Florestal mudou,
mudaram-se as vontades, e foi convidado um técnico especialista para
nos acompanhar na recolha dos fungos. Ouvimos longas e doutas
explicações sobre cogumelos.
Quando, ao fim da tarde, convidámos o
tal técnico para participar no petisco, tudo eram desculpas, perante
a insistência prontificou-se então, com a douta e técnica desculpa
de que se não deviam misturar tantas variedades de cogumelos, a
escolher alguns para confeccionar, os mais conhecidos claro,
lactários, tricholomas e boletos.
Parecia resolvida a questão, não,
tanto azar que passou,como bom, um “boleto de fel”. São amargos
como rabo-de-gato.
Só não ficámos sem petisco porque, à
cautela, o Guarda Florestal e a esposa tinham de reserva uma cesta
bem composta com aquelas variedades que costumávamos apanhar sem o
técnico especialista.
Pois, nem técnica sem experiência,
nem experiência sem técnica.
O mais razoável, penso, será dar
também a técnica a quem já tem experiência.
Da leitura mais atenta de Guarda, Os
produtos de Cá, fica claro:
O desenvolvimento desta região, e
mesmo do país, depende do desenvolvimento da agricultura, uma
agricultura familiar e de grande qualidade, adaptada à pequena
propriedade.
O modelo de desenvolvimento das
cidades, a Guarda é um dos piores exemplos, baseado no enchimento
administrativo da sede de concelho, sugando recursos a toda a
envolvente, criou esta situação insustentável, está esgotado e, a
não se alterar, irá asfixiar, ainda mais, toda a região.
Algumas falácias, como escala, super
mecanização, ou a fome no mundo, servem interesses de, senhores
feudais a destempo, intermediários e outros vendedores, explorando
até à asfixia total, com a ajuda do garrote de um crédito bancário
totalmente desajustado das necessidades e ritmos naturais de
produção, os agricultores.
Para combater a fome no mundo existem
meios e tecnologia, não há é vontade política. A fome tem sido
usada, e continua a ser, como arma de destruição em massa.
Os desperdícios dos países mais ricos
seriam suficientes para alimentar o resto do mundo.
O calibre, exigido pelas tais grandes
superfícies, chega a eliminar mais de sessenta por cento da fruta,
fruta excelente, de óptima qualidade, em nada inferior à grande
seleccionada, talvez até superior, tem menos água, deixada a
apodrecer, ou dada de alimento aos animais.
Uma sociedade irracional.
Propositadamente irracional.
Guarda, Produtos de Cá, é também um
serviço pública, é o ponto de partida, indica o caminho que, há
muito, os responsáveis, governo e autarcas, deveriam ter feito, ir
ao encontro do mundo rural, ouvir, com atenção e humildade, tudo o
que esse mundo tem para lhes dizer e ensinar.
É também um alerta para a defesa das
nossas espécies autóctones, bem adaptadas às condições de clima
e solo.
Um alerta para a defesa das nossas
sementes ancestrais.
Um alerta em defesa da nossa cultura.
Vamos todos ajudar os agricultores da
Guarda consumindo os nossos produtos.
Vamos todos ajudar o desenvolvimento da
região comprando no comércio local.
Só nós podemos defender a região e o
país, não há sebastião que nos valha.
As críticas de café e a luta de sofá
não contam, não contam e até ajudam o poder instalado.
Vamos todos seguir o exemplo do Márcio
Fonseca e fazer também a nossa parte.
Márcio Fonseca tem toda a minha
consideração, pelo que tem feito, pelo que faz e pelo que vai com
certeza continuar a fazer.
Obrigado.
mário